Conhecendo um pouco mais sobre as pessoas com deficiência por meio de sua história

Somos frutos de nossa história, nos reconhecemos pela história. As histórias podem ser contadas de várias formas, por vários contadores de histórias. Assim sendo, para que possamos conhecer um pouco mais a respeito das pessoas precisamos conhecer suas histórias. Este artigo tem por objetivo apresentar as pessoas com deficiência por meio dos aspectos mais relevantes e comuns da história destas pessoas. Esta é uma forma de conhecê-las melhor e entendermos o comum estigma da incapacidade subjacente ao imaginário da população e,também, a busca de um outro ponto de vista a respeito delas.

Sobre o uso de terminologias

A palavra deficiente tem sua origem do latim DEFICIENS, termo oriundo do verbo DEFICERE , “desertar, revoltar-se, falhar”, de DE-, “fora”, mais FACERE, “fazer, realizar”. (http://origemdapalavra.com.br/palavras/deficiencia/)

Quando utilizamos determinadas palavras para expressarmos nossas idéias, é incontestável que partimos de algumas premissas. Ao analisarmos a origem da palavra ‘deficiente’ percebemos que esta terminologia traduz as idéias de falha e de incapacidade que sempre permearam o imaginário sobre essas pessoas.

Termos como “aleijadinho”, “manco”, “bobinho”, “surdo-mudo”, “mudinho”, “defeituoso”, “inválido”, “ceguinho”, trazem subjacentes ao seu uso o tom pejorativo, o preconceito e a noção de incapacidade.

Observamos que durante a história várias terminologias foram utilizadas. Podemos citar: deficientes, excepcionais, pessoas deficientes, pessoas portadoras de necessidades especiais, entre outros.

Sassaki (2003) descreve a evolução histórica das diferentes palavras utilizadas para designar pessoas com deficiência. Sinteticamente poderíamos descrever da seguinte forma:

  • no começo da história, durante séculos: “os inválidos”;
  • Século 20 até ? 1960 : “os incapacitados”;
  • De ? 1960 até ? 1980: “os defeituosos”, “os deficientes”, “os excepcionais”;
  • De 1981 até ? 1987: “as pessoas deficientes”;
  • De ? 1988 até ? 1993: “pessoas portadoras de deficiência”;
  • De ? 1990 até hoje e além: “pessoas com deficiência”.

Convém apresentarmos algumas definições feitas por Amaral, 2005, muito esclarecedoras sobre o tema em questão.

Para a autora, “Deficiências são relativas a toda alteração do corpo ou aparência física, de um órgão ou de uma função, qualquer que seja sua causa; em princípio significam perturbações a nível de órgão”. “Incapacidades refletem as conseqüências das deficiências em termos de desempenho e atividade funcional do indivíduo; as incapacidades representam perturbações ao nível da própria pessoa”.

“Desvantagens dizem respeito aos prejuízos que o indivíduo experimenta devido a sua deficiência e incapacidade, refletem, pois, a adaptação do indivíduo e a interação dele com o meio.” (Amaral, 2005, p.63) Ou seja, as deficiências são relativas a órgãos específicos e não à pessoa como um todo. O uso do termo deficiente auditivo, deficiente físico, etc encaixa-se nesse desvio de interpretação. A noção de incapacidade está fortemente relacionada a questões subjetivas, que independem da pessoa ter ou não deficiência em um órgão. E a desvantagem é imposta socialmente.

Assim sendo, atualmente utiliza-se o termo “pessoas com deficiência”, o qual privilegia o sujeito em detrimento da deficiência de um órgão específico. Esta expressão foi ditada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2006.
Apresentaremos a seguir um pouco sobre a história destas pessoas, suas dificuldades e conquistas, para que possamos compreendê-las melhor, assim como o cenário atual da questão em tela.

Sobre a história das pessoas com deficiência no mundo e no Brasil

Desde a Antiguidade todas as pessoas que não seguem os padrões da maioria da sociedade são discriminadas. As pessoas com deficiência não fogem a esta regra. Apresentam um passado marcado pelo abandono e pelo estigma da incapacidade.

A forma como lidar com elas, até fins da Idade Média, variou desde o extermínio (através de infanticídio) “legalizado”, até um cuidado mais sério, mas que, no entanto, nunca conseguiu ser bom o suficiente para estimulá-los e inseri-los na sociedade. As restrições às pessoas com deficiência apresentavam-se em seus direitos civis e quase nenhum espaço lhes era dado para que participassem das decisões sobre questões que lhes diziam respeito.

Durante a Idade Média, o modelo assistencialista, ainda muito presente na atualidade, teve seu grande fortalecimento no cristianismo. Sob este paradigma as pessoas com deficiência são vistas como incapazes e por isso, dignas de pena.

Apenas no fim da Idade Média e início do Renascimento é que a perspectiva religiosa começa a dar espaço à perspectiva da razão.
As deficiências começam a ser analisadas sob a óptica médica e científica. Devido a este fato, o século XIX é considerado por muitos como o período mais próspero na educação das pessoas com deficiência.

Durante este período o grande avanço científico na área acarreta o que podemos denominar por ‘medicalização das deficiências’. Sob o prisma médico da época, as pessoas com deficiência são vistas como pessoas que precisam ser curadas em seus problemas orgânicos, normalizadas o máximo possível para poderem ser incluídas socialmente. A grande preocupação da Medicina em classificar as deficiências por graus, tipos, etiologias e formas de tratamento invade o ambiente escolar, isto é, a visão clínica de reabilitação e normalização exerce uma forte influência sobre as escolas.

Este fato, apesar de trazer mais conhecimento sobre as deficiências, desencadeou certa confusão entre estratégias pedagógicas e estratégias terapêuticas vivida fortemente até meados da década de 80 do século XX.

No contexto do Estado brasileiro no século XIX, durante o reinado de D. Pedro II, vivemos de forma inovadora na América Latina a criação de duas escolas para pessoas com deficiência: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (hoje Instituto Benjamin Constant) e o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos
(atual INES – Instituto Nacional de Educação para Surdos). No século XX, por iniciativa da própria sociedade civil vemos a organização de várias instituições preocupadas com o atendimento às pessoas com deficiências, tais como: as sociedades Pestalozzi e as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) voltadas para o atendimento às pessoas com deficiência intelectual; a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR) e a Associação de Assistência à Criança Defeituosa (AACD), voltadas para o atendimento às pessoas com deficiência física. Apesar de todas as investidas feitas até então para melhorar as condições de atendimento às pessoas com deficiência, foi a partir da década de 70 do século passado, com a abertura política, que surgiram os movimentos das pessoas com deficiência sendo por elas protagonizados (LANNA JUNIOR, 2010).

Sec. XIX Atualmente

Na década de 70, foi criado o lema “Nada sobre Nós, sem Nós”, difundido internacionalmente, que traduzia os direitos de participação plena das pessoas com deficiência em qualquer ação política a ser discutida ou gerada sobre elas.

Inicialmente percebemos uma unidade no movimento das pessoas com deficiência. A questão identitária como elemento pertencente a um grupo favorece a mobilização destes membros para a busca de seus direitos políticos. Há um fortalecimento do grupo como um todo a partir de seus elementos individuais.

Porém, a luta pelo poder e as necessidades específicas de cada tipo de deficiência gera uma tensão no Movimento das Pessoas com Deficiência no Brasil acarretando a formação, no início da década de 80, de grupos diferenciados formados por cegos, surdos e deficientes físicos. Surge um novo arranjo político que se caracteriza pela formação de federações nacionais por tipo de deficiência. Em 1984 surgem: a Federação Brasileira de Entidades de Cegos (FEBEC), a Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos (ONEDEF), e a Federação Nacional de Educação de Surdos (FENEIS).

Essas organizações ganharam força por meio da Constituição Federal de 1988, a qual instituiu os direitos e garantias fundamentais a todos brasileiros, indiscriminadamente. Este foi um passo significativo para que as pessoas com deficiência ganhassem voz, saíssem de uma posição de submissão e participassem dos processos de discussões a respeito de questões a elas referentes. Em 1999, as pessoas com deficiência tiveram uma grande conquista: a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (CONADE) com a função de acompanhar e avaliar o desenvolvimento da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (BRASIL, 1997).

Convém salientar algumas medidas importantes registradas em favor das pessoas com deficiência a partir da década de 80:

  • Lei 7853/89, ressalta o apoio, a integração e demais garantias para pessoas com deficiência;
  • Lei 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA);
  • Lei 8742, Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS);
  • Política Nacional de Educação Especial (1994);
  • Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ((LDB);
  • Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica;
  • Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008).

O cenário delineado mostra que não bastam medidas de ordem física ou logística como rampas ou elevadores. Começa a surgir um novo paradigma conceitual em relação a essas pessoas: a mudança dos referenciais assistencialista e da incapacidade pelos referenciais da promoção e da capacidade. Ou seja, a busca de uma forma mais ética de se encarar as diferenças.

“O fundamental em termos paradigmático e estratégico” é registrar que foi deslocada a luta pelos direitos das pessoas com deficiências do campo da assistência social para o campo dos Direitos Humanos. Essa mudança de concepção da política do estado Brasileiro aconteceu nos últimos trinta anos. O movimento logrou êxito ao situar suas demandas no campo dos Direitos Humanos e incluí-las nos direitos de todos, sem distinção.” (LANNA JUNIOR, 2010, p. 21)
É importante ressaltar que quando falamos de pessoas com deficiência falamos de Direitos Humanos, de exercício da cidadania em todas as áreas, sejam elas da educação, da saúde, da cultura, do trabalho, da família dentre outras.

Vivemos um momento histórico importantíssimo, no qual o Brasil foi enaltecido em 2009, pela OEA por coordenar medidas administrativas, legislativas, judiciais e de políticas públicas para pessoas com deficiência, sendo considerado um dos países mais inclusivos das Américas. (VANNUCHI, 2010 apud LANNA JUNIOR, 2010)

A história nos mostrou que essas pessoas passaram de ‘histórias a serem contadas’ para membros ativos e protagonistas da conquista de novas políticas públicas, principalmente nas áreas da educação e do trabalho.

A proposta da educação inclusiva, a partir da Declaração de Salamanca em 1988, resultou numa forte política pública de capacitação de professores e de adaptação de material didático-pedagógico pelo Estado Brasileiro.

Outra medida importante de política pública na área da educação aconteceu no município de São Paulo: a introdução, em 2011, pela primeira vez na Prova São Paulo, de avaliações para alunos com necessidades educacionais especiais.

Na formação acadêmica universitária observamos cada vez mais o favorecimento à acessibilidade das pessoas com deficiência por meio da contratação de intérpretes de LIBRAS, material impresso em Braille, além das adaptações do espaço físico como carteiras adaptadas, rampas e elevadores para as pessoas com deficiência física ou mobilidade reduzida.

No que diz respeito ao trabalho, a lei de cotas veio favorecer a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho através do investimento empresarial na capacitação de seus funcionários ‘sem deficiências’ para receberem as pessoas com deficiência, assim como dos próprios funcionários com deficiência.

Várias instituições estão se especializando no encaminhamento de pessoas com deficiência para o mercado de trabalho, preocupadas na qualificação profissional e na seleção adequada de perfis para os diferentes cargos. Começa a haver a necessidade de especialização dos profissionais de RH para essa função.

Nas conquistas dos direitos das pessoas com deficiências muitas conquistas foram feitas, mas muitas ainda precisam se fazer. Com certeza, a luta continua.
Por estas razões este texto vai além de uma simples contação de histórias ou de um mero artigo informativo. Ele é um convite à construção de uma nova postura perante as pessoas com deficiência por meio do conhecimento de sua história e da valorização da prática da ética e da cidadania.

Sobre Sibelle Moannack Traldi

Sibelle Moannack Traldi é graduada em fonoaudiologia pela faculdade de Medicina da USP, com aperfeiçoamento em Audiologia Educacional pela Santa Casa.
Atuou como técnica especializada de ensino superior do curso de fo-noaudiologia da FMUSP. É mestre em fonoaudiologia pela PUC-SP e especialista em Gestão Escolar. Atualmente é docente no curso de pós-graduação da Uninter e gestora do Instituto Seli.

Referências Bibliográficas

  • AMARAL, Lígia Assumpção. Conhecendo a Deficiência (em Companhia de Hércules). Série Encontros com a Psicologia. São Paulo-SP: Robe Editorial. 1995.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 16. Ed. Atual. São Paulo: Saraiva. 1997.
  • LANNA JÚNIOR, Mário Cléber Martins (Comp.). História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010.
  • SASSAKI, Romeu. Como chamar os que têm deficiência?

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